quarta-feira, 20 de abril de 2016

Resenha #22 - Clãs da Lua Alfa (Philip K. Dick)

[SEM SPOILERS]
A loucura sempre foi abordada nas obras de Philip K. Dick, mas em Clãs da Lua Alfa ela é o tema principal. Imagine uma Lua fora do sistema solar, que já foi um hospital psiquiátrico, se tornar um Estado independente, com clãs que tratam seus estados psicológicos como culturas próprias. Se já é insólito, melhor nem mencionar o fungo telepata de Ganimedes. 
História
Passa-se num futuro onde os seres humanos convivem com vários seres extraterrenos circulando como meros estrangeiros entre nós. Tudo começa com Chuck Rittersdorf, um agente da CIA, arrasado com a recente fim de seu casamento com Mary, uma terapeuta familiar. Chuck se divide entre propostas de trabalho arrumadas por Mary e planos suicidas, enquanto isso Mary se alista para uma missão governamental em na Lua Alfa III M2, em Alfa Centauro.
Nesta Lua, que um dia já foi um hospital psiquiátrico gerido pela Terra e tornou-se um Estado independente gerido por clãs derivados dos antigos pacientes, uma reunião entre os líderes dos clãs debate uma possível invasão. Os clãs são: os Infantilistas, os Paranoicos, os Depressivos, os Hebetizados, os Maníacos e os Esquizoides.
A loucura da normalidade
Apesar da loucura ser o tema do livro, toda a obra de Philip K. Dick gira entorno das barreiras entre o real e o irreal, onde costumeiramente são esmigalhadas pelo autor. A loucura aqui, é reconhecida pelos ex-pacientes como sua cultura, é a forma de mostrar uma realidade onde essa barreira não existe e derivam as situações mais insólitas e inventivas do livro. Contudo é o encontro de habitantes da Lua Alfa com os da Terra, que vemos essa barreira nos atingir com toda força. O normal é, mostrado com uma dose do pragmatismo tipicamente estadunidense, tão louco quando os clãs.
Trama engenhosa 
A trama do livro é engenhosa e exige uma leitura atenta aos detalhes, pois o livro é curto e os personagens variados, cheios de interesses próprios e psicologicamente afetados (ou seriam todos normais?). A narrativa segue vários personagens que vão se encontrando, além de Chuck, temos Gabriel Baines, o delegado do clã dos Paranoicos e em um momento segue-se Lebedur um Hebetizado com poderes psíquicos (ou seria apenas mais um louco?). 
A grande qualidade da narrativa é o aspecto psicológico dos personagens, que não são poucos,  tornando-os bastante críveis mesmo os que aparecem pouco.
Considerações finais 
A trama engenhosa com espionagem, cenários insólitos e personagens estranhos por si já é um bom motivo para ler. Contudo, não é apenas isso, as camadas mais profundas do texto, são capazes de provocar bons momentos de reflexão. Este livro deve ser para um psicólogo o que, O Homem do Castelo Alto é para um historiador. Seria muito interessante saber o que eles teriam a dizer sobre o livro.
Sobre a edição resenhada: Clãs da Lua Alfa, (escrito em 1964) não tem edição recente obrigando o leitor a procurar a da Francisco Alves de 1987. Quem sabe ele não é lembrado em meio as obras ainda não reeditadas pela editora Aleph?

 
Outras capas: de Portugal e a primeira em inglês.
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terça-feira, 12 de abril de 2016

Resenha #21 - Fundação e Império (Isaac Asimov)

[SEM SPOILERS]
Esta resenha corresponde ao segundo livro da trilogia clássica que foi publicada completa pela editora Hemus e separada pela editora Aleph. A primeira parte foi resenhada aqui e a terceira sairá no blog em breve.
"Fundação e Império", ao contrário das segundas partes das trilogias atuais, não é um ponto meramente preparatório para a conclusão de uma saga. Asimov nos entrega uma história com bastante aventura que expande o que foi iniciado no volume anterior.
A história
Fundação e Império começa, como o título já indica, com o encontro da Fundação com o decadente Império Galático. Quando um jovem e ambicioso general decide conquistar a Fundação para subir dentro das fileiras imperiais, instaurando assim mais uma das já famosas "Crises Seldon". Depois de uma passagem de tempo surge uma nova ameaça que, a princípio não foi prevista por Hari Seldon. Bayta e seu marido Torã são enviados para espionar o misterioso Mulo.
O papel do indivíduo na história e livre-arbítrio.
Asimov abre um debate sobre o papel do indivíduo na história, quando cria sua psicohistória e Hari Seldon. O indivíduo é ator ou espectador da Sociedade? É interessante como os personagens são atormentados pela fé na ciência de Seldon - "Uma crise Seldon se aproxima!" - e encontram saída em grande atos individuais de astúcia que tem como resultado reforçar a mesma fé reiniciando o ciclo de crises. Sendo a saída dessas crises atos individuais de aventureiros corajosos, as massas são previsíveis matematicamente, logo tomadas como impotentes.  Desta forma o inimigo é um elemento que tolhe essa individualidade, na obra é um homem capaz de controlar as emoções, ou seja pode acabar com o livre-arbítrio do indivíduo.
A diversão e imaginação continuam
Mantem-se as ressalvas da primeira parte, a exceção de alguns personagens que foram melhor trabalhados. O palhaço Magnífico se destaca pois é o único que se expressa realmente diferente dos demais. Infelizmente o casal Bayta e Torã são personagens bem fracos apesar de muito importantes. A trama tem menos passagens de tempo e o retorno ao planeta Trantor se destaca por ser o único ambiente até então que pareceu mudar em séculos de história contata até então. O melhor do livro é o mesmo comentado sobre a primeira parte, as viradas e surpresas na história são muito boas e as grandes revelações nos fazem repensar os detalhes que passam batidos durante a leitura.
Considerações finais
Fundação e Império, é uma sequência que expande a história e deixa um bom gancho para a sequência. Há de se pesar a imaginação de Asimov em contar histórias em comparação com certos problemas na sua literatura. Cabe ao leitor decidir o que é mais importante para si.
Sobre a edição lida para a resenha: Fundação (Trilogia) de Isaac Asimov. Trata-se da primeira edição pela Hemus, publicada numa época em que até uma trilogia não precisava de três livros publicados separadamente.
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quarta-feira, 6 de abril de 2016

Conto autoral - A procura


Este conto foi minha primeira investida na Fantasia. Ele é resultado de um desafio literário promovido no blog Entre Contos. Cada desafio algumas regras são modificadas como tema, tamanho do texto e a forma de avaliação, mas basicamente trata-se de um espaço onde todos podem praticar a escrita e a leitura, consciente da literatura. A versão que posto aqui foi alterada com o aproveitamento das dicas que recebi fruto da interação que o desafio promove. 
Leia a versão original e ler os comentários do desafio por aqui, ou baixe gratuitamente o E-book para lerem onde quiser, ou ainda, leia aqui no blog mesmo. Espero que gostem.



A procura

I
Olhou para a vastidão de terra que o cercava e viu o mundo. O velho griô sabia o nome que se dava a cada porção de terra, mas mundo era o único nome que lhe fazia sentido. O seu mundo era um pouco de cada um que conheceu. Vasto apenas porque compartilhou, daí vem o mais belo do conhecer. Foi o que fez naquela noite de festa do reino de Idunu. Não diferenciava, há tempos, vilarejo, aldeia ou reino. Eram todos reino. Cada reino com suas pessoas, cada pessoa com seu mundo e era atrás dos mundos que caminhava sem parar.

***

As casas decoradas cercavam a praça calçada de arenito polido, um oásis em terras áridas banhadas pela intermitência do grande rio que corta o mundo. No terceiro dia da festa, ao deus chamado Òfún, pela boa colheira, todos já estavam exaustos da comemoração. O vinho de palma havia embriagado quase todos os seus felizes habitantes. Os adultos da cidade dormiram onde caíram. Deitaram-se e deixaram o sono o levar pela correnteza dos sonhos. Durante os dias de festa as crianças divertiram-se sem se embriagar, dormiam e acordavam para divertir-se novamente de modo que havia sempre crianças correndo, gritando e alegrando o ambiente enquanto outras encantavam os adultos com seu sono inocente.
Um grupo de crianças estava acordada quando se deram conta que todos os adultos estavam dormindo. Era tarde da noite e nunca se distanciaram de casa a essas alturas.
— Vamos andar pelos arredores da praça — Disse Oshanna, a mais corajosa delas.
— Eu não, vai você. — Um dos meninos disse, sendo seguido por outros em coro.
— Que medrosos. — Oshanna puxou o líder dos medrosos, que envergonhado a seguiu, e os outros acompanharam.
Seguiram a grande aventura a metros do berço pela parte central da praça iluminada por piras que queimavam alto. Seguiram até a mata escura quando viram um ponto luminoso não muito longe. Esconderam-se e ficaram aos cutucões e os dedos indicadores na boca tentando não fazer barulho. O ponto de luz era uma tocha acessa, a medida que se aproximava, logo revelou uma forma humana que a segurava. Um homem velho que caminhou pela trilha árida envolto de palmeiras e grandes plantas sazonais, comuns em Idunu, parou no ponto da trilha bem perto de onde as crianças estavam, sem deixar de olhar para frente.
— Aqui é o reino de Idunu?
As crianças arregalaram os olhos, mas Oshanna logo levantou, ansiosa por mostrar sua coragem. Já os outros levantaram desanimados como que pegos numa brincadeira de esconder.
— Não é reino, é aldeia!
— Vim conhecer a festa da colheita de seu reino.
— Estão todos dormindo, menos nós. — Revelou ingenuamente um dos pequenos.
— Achei que encontraria alguém disposto a ouvir minhas histórias.
— Um Griô? — Oshanna falou com seus olhos negros arregalados de emoção. — Venham seus medrosos, um contador de histórias não irá matá-los. — Eles vieram encorajados, mas com medo do desconhecido.
Oshanna disse para que o contador lhes contasse uma das suas melhores histórias que depois sua família lhe recompensaria. Então, sentados em torno de uma das piras da entrada da cidade, o griô anunciou que contaria a história de Tyádora, uma grande guerreira. As crianças nunca ouviram falar dessa história o que as deixou muito curiosas.

II
Há muito tempo existiu uma formidável guerreira de nome Tyádora. A mais velha das duas filhas do rei Qussim e da rainha Nebula, do reino Onijala. Era uma mulher dotada de uma beleza lendária além de ser uma guerreira muito habilidosa em combate, dominando a lança e o escudo como ninguém. Era dito que arremessava a lança no futuro e atingia o adversário no passado. Porém o governo do rei Qussim, entrou numa torrente de guerras contra o poderoso reino de Jagun. Muitos diziam que trata-se de uma vingança dos seus antigos conselheiros, os donos da adivinhação, conhecidos por babalaôs. Em períodos anteriores eram tão respeitados quanto os reis, e isso teria trazido a inveja de Qussim. Sem suas previsões, cunhou seu governo na base da conversação e alianças meticulosas. Como uma árvore seca que perdera as folhas, Onijala morria aos poucos. Tyádora, sempre disposta a mostrar seu valor nas artes da guerra, treinou até se tornar a melhor guerreia do exército de Onijala. Lutou e alçou notoriedade mas todo seu esforço só havia servido para evitar a aniquilação do reino, nunca conseguira nada perto de derrotar o inimigo.
A paz entre os reinos veio apenas depois da morte do velho rei de Jagun. Seu filho Zabor, assumiu aquele reino. Ele crescera em meio a ânsia pela guerra de seu pai mas ansiava pela paz e aceitou negociar com Qussim. Não demorou muito para que a disposição para a paz dos dois reis se convertesse em um tratado. Ficou acordado que Zabor se casaria com Tyádora selando a paz entre os maiores reinos do mundo.
As famílias passaram a se reunir em encontros de esperança e desconfiança mútuas.
— Espero que nosso casamento sele a paz tão necessária, rei Zabor. — Tyadora disse solenemente.
— Eu espero mais que isso.
A beleza de Tyádora se manifestava tanto nos traços suaves e arredondados quanto na sua animosidade constante. Zabor estava encantado. Tyadora permanecia indiferente.
O velho rei alimentava a esperança de sobrevivência do reino servindo pessoalmente vinho de palma à jovem filha e ao rei vizinho. Onijalenses viam aquilo como um sinal de submissão, já para os Jagumanos, um ardil do velho rei.
— Você e as próximas esposas poderão desfrutar bastante o período de paz que virá.
— Não quero outras esposas, apenas você Tyádora.
— Não prometa isso. Meu pai disse o mesmo a minha mãe.
— É tudo tão inevitável para você? — Tyádora ignorou. — Como na guerra?
— É muito orgulhoso dos teus acordos, assim como meu pai. Se esta guerra acabou foi apenas por vocês serem parecidos. Ainda não decidi se penso que essas guerras ocorrem porque vocês reis a querem ou não.
— As vezes não temos escolha e — ficou sem palavras.
— Você também não sabe, talvez sequer tenha se perguntado antes. Pensava que apenas sendo a melhor acabaria com a guerra, mas lutando vi que não. Até que veio você e este casamento. Para acabar com a guerra eu farei esse pequeno sacrifício, por isso não precisa me prometer nada. Agora, me responda, que escolhas que vocês reis não fazem que acabam resultando nas guerras?
Zabor continuou sem palavras e aliviou-se por um instante com a interrupção causada por algumas vozes que clamavam a plenos pulmões.
— O Ibiri de Onijala desapareceu!
Os olhares dos guerreiros de ambos os lados recobraram o rubror da guerra e algumas armas foram erguidas. Mas a paz que Zabor e Qussim tanto lutaram para erigir era preciosa demais e exigiram muito dos seus melhores esforços para acalmar os ânimos dos aliados da findada guerra. Zabor e Qussin discutiram uma solução em meio aos convidados ansiosos.
— Lamentamos o roubo do Ibiri, rei Qussim. Sabemos que pode ter sido qualquer um insatisfeito com a paz.
— A autoria do roubo é menos importante que o desaparecimento do Ibiri, Zabor. Ele é muito mais importante do que aparenta. Sem ele as colheitas não serão boas o suficiente para alimentar a todos.
— Achei que não acreditasse nas adivinhações dos babalaôs?
— Os amuletos não tentam nos enganar. Não podemos ficar sem eles.
— Como seu convidado, devo partir para recuperá-lo. — Zabor anunciou gravemente.
— Não, Eu vou. Consultarei Mwelo, a melhor babalaô viva, que aprendeu com o próprio Orunmilá. — Todos se voltaram para Tyádora.
— Mas Tyádora...
— Acabamos de sair de uma guerra e não vou permitir que ela recomece. Podemos muito bem consultá-la.
— Não, minha filha. Você sabe que Mwelo não faz adivinhações sem carregar uma maldição junto. Não podemos mais depender deles, agora muito menos, porque nutrem raiva de nós.
— Pode haver pior mal que uma nova guerra? — Disse Tyádora.
— Concordo com seu pai, Tyádora. Melhor obedecer. — Falou sem firmeza e recebeu um olhar furioso de Tyádora que, por fim, se calou e deu um passo para trás.
A reunião continuou, mas Tyádora que se manteve calada e não foi notada quando saiu de perto da fogueira que iluminava parcamente os rostos preocupados. Quando notaram sua ausência, suas armas já haviam desaparecido. Ninguém pensou em procurá-la junto a cama da irmã mais nova, Zene. Lá estava também Nebula, sua mãe.
— Eu sei que está nervosa com tudo isso, mas eu vou voltar – disse para as duas. Não vai mais ter guerra aqui. — Tyádora abraçou Zene, enquanto olhava para Nebula, que nada disse. Zene parecia inconsolável.
— Faça tudo que puder para voltar, Tyádora. — o olhar acalentador de Nebula, foi toda benção que precisava para seguir.
Deixou-as agradecendo a Obá por Zene não dar alarme de sua fuga. Tyádora saiu a toda velocidade rumo ao único lugar onde poderia saber do paradeiro do Ibiri. Assim começou seu caminho.

III
A cabana da adivinha Mwelo era de difícil acesso, onde bandos de leões não são raros. Mas a grande árvore oca transformada casa era inconfundível. Não havia porta e Tyádora entrou sem ter certeza que Mwelo estaria lá. Então, Mwelo falou como se não houvessem paredes na sua casa, tampouco nas mentes das criaturas vivas, quando sua voz entrou na cabeça conversando diretamente com seu íntimo, ignorando a hospitalidade e revirando os medos. Quando em transe, sob guia de Ifá, Mwelo via o futuro e jogava seus búzios tanto para reis quanto para aldeões.
— Apenas faça a pergunta. — Mwelo disse sem mexer os lábios secos.
O interior da oca era repleto de incensos acessos e a fumaça passeava lentamente como se morasse ali. Seguindo a voz, ou sendo levada por ela, rompendo os filamentos do perfume de ervas misteriosas, Tyádora encontrou Mwelo, sentada atrás de um tablado onde via círculos formados por colares de contas. Quando formulou uma pergunta Mwelo a interrompeu. Agitou os búzios e falava em transe. Não falava nenhuma palavra que Tyádora conhecesse. Lamentou ter crescido sem conhecer os adivinhos.
Até que jogou os búzios. Abriu os olhos. Catou alguns. Olhou de novo. Catou outros. — Seu rumo será bem caminhado, achar o Ibiri de Omijala. Mas te peço que não vá, Tyádora.
— Não tenho escolha, se eu não for a guerra recomeçará, nem meu pai, nem Zabor juntos podem acabar com as guerras do jeito que está.
— O caminho está claro para mim, mas só posso te guiar se tiver certeza de que poderá cumprir até o fim.
— Para manter a paz entre Omijala e Jagun, sim.
— Entendo. Mas deve saber que uma vez nele, terá de pagar um preço.
— Que preço? — A feição de Mwelo se fechou.
— Saber do destino me custou o exílio — Olhou ao redor — Mas você não quer dominar o destino, não é? Então o preço será outro – deu de ombros, jogando a resposta ao mistério. — Para obter o Ibiri terá de reclamá-lo ao povo de Ganar.
— O povo de Ganar, os que controlam os raios?
— Xangô controla os raios. Eles são obedientes a Xangô e ele os concedeu o seu uso. Não se esqueça disso.
— Obrigado Mwelo.
Mwelo nada disse, apenas montou uma expressão diferente em seu punhado de rugas. Tyádora saiu e dedicou parte de seus pensamentos para tentar entender aquela expressão. Parecia tomada de uma grande falta. Haveria uma palavra que expressasse isso? Afastou o pensamento a medida que se distanciava da árvore oca de Mwelo e muito mais do reino de Onijala. Passou dias caminhando. Afastou-se, alçando montanhas gigantescas onde os dois reinos pareciam um único ponto na imensidão do mundo. Isso a deixou feliz e esperançosa, mas também com uma tremenda vontade de ver sua família novamente.

IV
Cansada e tão longe de sua casa, Tyádora caminhava numa terra castigada pelos ventos de Oyá. Teria andado em círculos, até agora? Caminhou dias sem conseguir uma caça, dormindo mal em abrigos improvisados, enrolada pelo frio e pela fome, nunca passara tanto tempo fora de casa. Até que encontrou uma fonte de água e os restos de um assado que devorou com vontade. Quando recobrou as forças notou que deveria ter gente por perto. Seu instinto se aguçou novamente. Não demorou muito a ouvir os trovões e os gritos de alegria dos homens que os provocavam. Olhou do alto da pequena colina e viu a aldeia dos Ganar, os filhos de Xangô, os que tutelam os raios.
Apesar de ter comido os seus restos, não os deixaria vê-la como uma pedinte e sim como uma princesa guerreira de Onijala. Aproximou-se do grupo de homens, enfeitados com plumas num zige-zagueado que simulavam os raios em todas as partes da sua vestimenta. Eles a notaram e ela falou.
— Eu sou Tyádora de Onijala. Exijo falar com seu líder.
— Suma daqui, mulher. — Um deles disse estendendo os braços para trás como se fosse arremessar algo. Sorriu zombeteiro, causando risadas dos outros do grupo.
Tyádora caminhou firmemente com sua lança em riste e com o escudo erguido. O grupo sentiu a ameaça e se postaram em combate.
— Não quero lutar, apenas falar. — No fundo ela estava desejosa de enfiar a lança e estripar aqueles soberbos.
A resposta foi que dois dos homens repetiram o gesto de provocação, mas desta vez, raios surgiram das mãos deles e os arremessaram como lanças. O primeiro errou Tyádora e o segundo raspou o escudo. Sentiu seu braço estremecer por dentro, um tipo de dor que não conhecia. Quando percebeu que seus adversários ficaram expostos e Tyádora aproveitou, ignorou a dor, projetou seu escudo e derrubando um dos Ganar e o outro com um chute rodado. Um terceiro veio com um raio mas usando como uma espada golpeando de cima para baixo. Tyádora fez um arremesso com a lança e arrancou a orelha do guerreiro que caiu gritando de dor. Um último, o que parecia ser o líder do grupelho, fez uma lança e um escudo com os raios, armando-se de modo parecido com Tyádora. Eles chocaram os escudos, mas Tyádora nada sentiu, e apontaram as lanças nos pescoços um do outro. A lança de Tyádora era maior e os olhos do guerreiro ganar se arregalaram.
— Só preciso de um de vocês vivo para me levar ao seu líder. Será você? — Seu olhar ameaçador não deixou transparecer a dormência no seu braço que ainda segurava o escudo.

***
Tyádora foi levada até o líder dos Ganar. Entrou nos limites de sua aldeia. As casas baixinhas de barro eram decoradas com desenhos coloridos. Eram motivos com raios e imagens de homens nus com corpos perfeitos de pele brilhosa e olhares lascivos, exatamente como eram os homens daquele povoado, não teve como não reparar. Conseguiu ver poucas mulheres. Elas estavam atrás da corrente de homens que tinha prioridade em ver a estrangeira, mas os poucos olhares que viu eram apertados de fúria e ciúmes. No centro viu uma fileira de homens mais ornamentados, evidentemente o líder deles seria o mais suntuoso daqueles homens. Eis que ele falou.
— Esta é a guerreira que os botou de joelhos? — Inquiriu ao guerreiro que sobreviveu. — Veio falar comigo? Se não soubesse disso talvez a teria matado, mas minha curiosidade é maior. Qual o motivo de sua vinda?
— Meu nome é Tyádora do reino Onijara. Eu vim exigir o Ibiri que foi roubado.
— Não importa de que parte do mundo você veio. O Ibiri está com os orixás agora.
— Então o tragam para mim. Vocês o roubaram.
— Não seja tola. Os Ganar não roubam, conquistam o que desejam. — Olhou para onde se encontravam as mulheres.
— Então vocês conquistaram de alguém que roubou.
— Isso não nos interessa.
— Mas interessa ao meu povo e vocês tem de devolvê-lo.
— Já disse, não nos interessa. Não está mais conosco.
— Para quem vocês venderam?
— Tola. Não vendemos nada, conquistamos. Como acha que conquistamos o poder dos raios? Seu Ibiri foi entregue como oferenda para Xangô e ele continua a permitir que o usemos o poder dos raios. Assim fazemos para termos o que quisermos.
— Vocês tem acesso a Xangô? Podem me levar até ele. — Riram como se ouvissem a piada mais engraçada do mundo.
— Ele só fala com quem ele desejar. Se ele quisesse falar com você já teria aparecido aqui mesmo.
— Mentiroso. Deve ter algum local sagrado que vocês buscam o seu auxílio. Eu quero ir para lá. — O sorriso do líder dissipou-se e tirou as costas de seu trono de palha — Se me levarem para Xangô, seremos seus aliados e forneceremos mantimentos em troca de apoio em futuras guerras. — O sorriso voltou a brilhar na face do líder.
— Pois bem. Vamos dar o que quer. Mas não podemos garantir que Xangô queira falar com você. Vai ser interessante vê-lo dizimar-te com um raio.

V

Tyádora foi acompanhada pelo líder, chamado Ciko, e mais dois Gunar para uma montanha fora da aldeia. Caminharam por toda a manhã do dia seguinte até encontrar um templo muito estranho. Nunca tinha visto nada parecido. Uma caverna talhada na pedra e estátuas com desenhos parecidos com os pintados na casa da aldeia Ganar. Nunca vira uma estátua com um orixá, sequer ouvido falar da existência de uma. Começou a pensar em armadilha, mas seu escudo e sua lança estavam consigo. Temeu mas não parou até que os outros pararam. Ciko entregou uma porção de amalá.
— Apenas caminhe em frente para dentro da caverna e terá o que deseja.
Tyádora nada disse e caminhou. Até ser tomada pela escuridão e não ver luz nenhuma à sua frente. Apenas o próprio vulto e sua respiração. Linhas em tons escuros eram quase indiscerníveis, mas o chão era liso como se polido de forma que caminhou sem medo de cair. A luz ao fim do desconhecido começou a brilhar. Apertou o passo no compasso da respiração ofegante. Escudo e lança em mãos. A luz maior e seu passo aumentou. Viu-se correndo como que partindo para o ataque.
— Pare! — Não era uma voz, mas um trovão vocalizado.
Tyádora estremeceu e acabou obedecendo. Ficou apoiada sobre um joelho e olhou para o chão amedrontada. Não conseguia levantar a cabeça e ver a fonte da voz.
— Larga tuas armas e deixa apenas teu presente.
— Não trago presente. — Uma pausa longa o suficiente para deixar uma gota de suor escorrer pela sua face e pingar pelo seu nariz.
— Levanta e deixe-me ver você. — Ela obedeceu.
— Então você é o presente? — Disse ignorando o amalá. Seu tom mudou, o trovão agora parecia mais com a voz de um homem — Tem uma beleza comparável a Oshum, com certeza um presente diferente e muito agradável.
— Não sou um presente. Vim peg… o Ibiri… — Respirou fundo e começou do início – Eu sou Tyádora, não vim como presente, vim como princesa de Onijala. Vim reaver o Ibiri de meu reino.
Então ela pôde ver o deus em sua frente. Sentado em uma pedra redonda cercado de colares de seis contas, vermelhos e brancos, como sua túnica ornada com seus próprios raios.
— Tyádora, agora lembro de quem é. Sua beleza é mesmo lendária, atiçaria o fogo de qualquer homem vivo. Apenas não a vi lutando, mas se todas as histórias forem verdade. A lendária Tyádora.
— Lendária? Não sou lenda, nem quero ser. Apenas vim pegar o amuleto de Onijala. Não posso voltar sem ele. Foi roubado, segui a trilha que me levou aos Ganar e eles me levaram até aqui. Não está?
— Pois bem. Eu te concedo a posse do meu Ibiri. Se soubesse que fora roubado, não aceitaria.
Um ponto escuro da caverna iluminou-se e o Ibiri se fez visível. O pequeno cajado de palha era um artefato simples e Tyádora o segurou como algo mais valioso que ouro.
— Obrigada. Agora devo ir pois a colheita se aproxima e não tenho mais tempo a perder. — Xangô que franziu a testa.
— Sim o tempo. Ele não existe aqui onde estamos — Desta vez foi Tyádora que franziu a testa. — Vá. Refaça teu caminho até sua casa.
Sem dizer nada, Tyádora o fez. Caminhou pela caverna, viu a sala iluminada de Xangô se reduzir a um ponto e desaparecer. O breu indistinguível até ver a luz que era a saída. Quando chegou na entrada não encontrou Ciko nem os outros Ganar. Parecia ser tarde e não se surpreendeu que eles não a tivessem esperado. Caminhou até a aldeia Ganar, mas preferiu apenas passar entorno deles, queria chegar o quanto antes em Onijala.

VI
Tyádora, apesar do cansaço, começou a correr quando reconheceu as muradas do reino. Foi até a área de festa, mas estava bastante diferente. Haviam poucas pessoas e nenhuma notou sua presença. Caminhou por entre os corredores velhos e cansados pelo tempo. Deparou-se com uma bela mulher de traços familiares. Ela arregalou os olhos e sua boca abriu num círculo de pavor.
— Não pode ser. Tyádora?!
— Sou eu, mas quem é você? Onde está Qussin, Nebula e Zene?
— Tyádora, como você pode estar assim. Não mudou nada.
— Quem é você afinal?
— Tyádora, eu sou Zene!
Tyadora entendeu o pavor e quase fez a mesma expressão. Elas se abraçaram, antes que voltassem a fazer mais perguntas.
— Mas como? Eu fiquei fora nem duas luas.
— Não Tyádora. Faz quarenta anos que você desapareceu. Porque você desapareceu?
— Eu não… eu trouxe o Ibiri. O que aconteceu aqui? Onde está nosso pai, nossa mãe?
— Ah Tyádora, tanta coisa aconteceu. Tempos muito difíceis. Ainda mais depois que nosso pai morreu. As colheitas foram escassas. Muitas alianças que nosso pai fez foram perdidas. Nossa mãe se foi algumas luas depois de você partir. Não somos nem sobra da Onijala que você viu da última vez. Eu fiz o que pude – Zene começou a chorar – fiz o que pude.
— Zabor fez isso com Onijala? Onde ele está?
— Não, não! Zabor partiu antes de nosso pai falecer. Entregou Jagun para nosso pai. Dizia que te amava e que não voltaria sem te encontrar primeiro.
Tyádora ficou de cabeça baixa tentando assimilar os anos que perdera sem saber. Tanta tragédia se abateu. As lágrimas continuavam a fluir e pingavam no Ibiri que estava em sua mão. A expressão de falta de Mwelo lhe retornou a cabeça.
— Fique com isso, Zene, e guarde bem. — Entregou o amuleto para Zene.
— Não Tyádora, isso é amaldiçoado.
— Não fale assim, Zene.
— Por causa do Ibiri, perdi pai, mãe e minha irmã e passamos toda a sorte de dificuldades.
— Não. Foi minha culpa. Fique com ele e reerga Onijala com ele.
— Como assim. Você não vai ficar?
— Não. Meu tempo se foi quando fui buscar o Ibiri. Não tenho mais lugar no mundo. Só me resta procurá-lo.

VII
— E desde esse dia, muito se ouviu falar de Tyadora. Cada um conta uma parte e eu conto tudo o que sei.
— Onde Tyádora está? Ela encontrou Zabor? O que aconteceu? — Perguntou Oshanna, com todo o ardor de uma criança curiosa. O sorriso de satisfação agradou o griô e o fez sorrir também.
— Ela está por ai assombrando quem anda pela noite sem avisar os pais. — Disse um dos meninos.
— Não. Ela é uma guerreira. Forte. Não assombra ninguém. Posso ser como ela? — Oshanna discutia com os outros.
— Saiba se ver no outro e será um pouco como Tyádora, Oshanna.
O amanhecer brindou os pequenos ouvintes com bocejos de quem deveria estar acordando a esta hora. Os adultos no centro da aldeia acordaram e as crianças voltaram acompanhadas do velho contador de histórias. Eles o receberam bem, por trazer as crianças a salvo de seus descuidos. Depois de comer bem e descansou um pouco, contou e ouviu mais histórias e depois seguiu em frente.
Olhou para a vastidão de terra que o cercava e viu o mundo. O velho griô sabia o nome que se dava a cada porção de terra, mas mundo era o único nome que lhe fazia sentido. O seu mundo era um pouco de cada um que conheceu. Vasto apenas porque compartilhou, daí vem o mais belo do conhecer. Foi o que fez naquela noite de festa do reino de Idunu. Não diferenciava, há tempos, vilarejo, aldeia ou reino. Eram todos reino. Cada reino com suas pessoas, cada pessoa com seu mundo e era atrás dos mundos que caminhava sem parar. Quanto aos reinos, ele os esqueceu desde que abdicou do seu e partiu em sua procura. Em cada mundo que o velho Griô conheceu, enxergou um pouco de Tyádora.
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terça-feira, 5 de abril de 2016

Resenha #20 - Fundação (Isaac Asimov)

[SEM SPOILERS]
Esta resenha corresponde a primeira parte da trilogia clássica. O livro lido contém as três partes, mas como existem edições (da Aleph) em separado, - sendo elas: "Fundação", "Fundação e Império" e "Segunda Fundação" - serão resenhadas como tal.  
Fundação é um clássico da Ficção Científica e considerado a obra máxima de Asimov. A veia por onde corre a história é principalmente política, inclusive quando aborda a religião e a tecnologia. A  escala grandiosa que Asimov construiu o livro são maiores que a duração de uma vida humana, sendo necessários vários personagens para acompanharmos o que acontece. Contudo, a figura de Hari Seldon perpassa todas as longas passagens de tempo. 
A história.
Se passa em nossa galáxia em um futuro muito distante, onde existe um Império Galático de 12 mil anos. Hari Seldon é um cientista que desenvolveu a psicohistória, uma ciência matemática que calcula grandes movimentações históricas através dos milênios. Suas previsões apontam como inevitável a queda do grande império, seguido de um longo período de guerras. Seldon propôs a criação de uma Fundação para guardar todo o conhecimento humano, reduzir o período de caos com a formação de um novo império. A Fundação é criada no distante planeta Terminus e seu desenvolvimento político se dá em meio a crises com os planetas vizinhos e profecias cientificas de Seldon. No primeiro volume, acompanhamos essa longa história pelos personagens Salvor Hardin e Hober Mallow, além do próprio Hari Seldon.
Império à romana
A influência do império romano na história do império galático é bem aparente, com a profusão de conceitos como "municipalidade" e "senado". Outra semelhança é de um império tão grande que as áreas mais longínquas usam essa ausência como elemento político, além, é claro, da semelhança da queda do império romano e do galático. Contudo são inspirações políticas retiradas da história do Império romano não ficaram nada forçadas. O mesmo não se pode dizer da religião que na obra ficou reduzida a instrumento de manipulação onde só existem enganadores e enganados.
Imaginação e diversão
A escrita de Asimov é pouco elaborada na forma de usar a linguagem, segue um estilo de relatório pouco atraente por si, o que por um lado agiliza a leitura. Sua qualidade está na imaginação da história que conta. É um livro bastante divertido pelas suas viradas que são bem fundamentadas cientificamente e isso fez o autor se reconhecido. Um bom exemplo é que Asimov inventou a psicohistória através do estudo de gases que podem ser entendidos em grandes movimentos, mas incapazes de serem previstos em unidades menores.
Fundação termina com suas pequenas histórias fechadas, porém as grandes questões ficam em aberto e o leitor terá que continuar a ler os volumes seguintes, "Fundação e Império" e "Segunda Fundação". Se o leitor se satisfizer com a imaginação e se divertir lendo Fundação não será problema completar a Trilogia.
Sobre a edição lida para a resenha: Fundação (Trilogia) de Isaac Asimov. Trata-se da primeira edição pela Hemus, publicada numa época em que até uma trilogia não precisava de três livros publicados separadamente.
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