terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Resenha #69 - Os três estigmas de Palmer Eldrich (Philip K. Dick)

"Os três estigmas de Palmer Eldrich" é um dos romances emblemáticos de Philip K. Dick em sua fase psicodélica, mas basta ler um dos livros para saber que PKD é bem mais que o mero lado recreativo da química mas sim uma porta de entrada para as reflexões filosóficas que permeiam toda sua obra. 

A estória se passa num futuro (2016, que já é passado para nós) onde a Terra está superaquecida e superpopulosa, onde os ricos podem desfrutar de um paraíso tropical na Antártida. A exploração espacial já rendeu diversas colônias espalhadas no sistema Solar, onde a vida é difícil e o recrutamento é compulsório. Uma da saídas dos colonos é o consumo de Can-D, uma droga alucinógena que "traduz" ambientes em miniatura, onde os usuários vivem uma vida de consumo no melhor estilo "American Way of Life" no corpo de Barbie de Pat Insolente. Esse mercado é explorado pelo traficante Leo Bulero que vende a droga para os colonos sob vistas grossas da ONU. A estória começa com a chegada de Palmer Eldrich e uma nova droga que ameaça o império de Bulero, a Chew-Z. Bulero recorre a seu funcionário, Barney Mayerson, um precog* que trabalha como consultor de moda para os ambientes em miniatura, utilizados pelos usuários de Can-D. 

Ao longo da estória acompanhamos duas linhas narrativas: a primeira é a de Barney Mayerson vendo sua carreira profissional, pela qual deixou a esposa, ruir em meio a nova concorrência com a chegada de Eldrich. Dick consegue dar sensibilidade ao drama de Barney em meio a uma trama de intrigas enquanto o personagem, aparentemente bem estabelecido, busca seu lugar no mundo. A outra linha narrativa é o embate entre Leo Bulero com Eldrich, onde vemos dois tipos de "vilão", um o gangster tradicional, ao qual é integrado a sociedade e outro, na forma de Eldrich, um mal alienigena e estranho. Dick retrata em Eldrich um tipo de deus cruel ou, ao menos, muito distante do deus cristão de amor ou severidade. Este poder das drogas, seja a fuga pela Can-D ou a experiência transcendental da Chew-Z, se conecta com seu uso religioso mesmo que seus usuários não busquem ativamente com este sentido. Isso aparece na forma que se usa a droga Can-D: masca-se o alucinógeno observando dois bonecos do tipo Barbie e Ken, que se tornam avatares para a viagem a um mundo consumista que sequer existe mais na Terra. Algo relacionável a alucinação coletiva digital que Gibson se referiria, décadas depois. Isso acontece, pois, o autor trabalha muito com a intuição ao construir o seu mundo. O calor insuportável da Terra está mais ligado ao medo/fuga/covardia da sociedade que com o Aquecimento Global. Tudo isso em meio a constantes questionamentos do que é realidade e ironias escrachadas como a da "terapia de evolução", nas quais os habitantes da Terra pagam um bom dinheiro para serem melhores e capazes. Algo mais ligado ao status do que realmente uma evolução num sentido mais profundo.

O constante questionamento do que é a realidade, uma marca do autor, aparece com toda a força nessa estória. Personagens que se descobrem fantasmas de outras realidades possíveis, avatares e noções de realidade que brincam com a barreira entre o sagrado e o profano conduzem as jornadas dos personagens, principalmente a de Mayerson. A experiência de Can-D, algo intuitivamente parecido com a internet, é elevada com a Chew-Z. O uso dessa droga traz a experiência de ser parte de algo maior ou, em outras palavras, de ser a ilusão na mente de outro. Recomendo como leitura para iniciados na obra do autor. Para quem tem a mente fechada em relação ao uso de drogas eu não recomendo o leitor para o livro.

*Precogs são paranormais com a habilidade de ver o futuro. Eles enxergam todas as possibilidades de futuro e identificam as que tem maior probabilidade de acontecer. Eles são bastante recorrentes nas estórias de Philip K. Dick, apesar de serem mais lembrados no conto "Relatório de Minorias", que rendeu o filme Minority Report.
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terça-feira, 14 de novembro de 2017

Resenha #68 - O Alienado (Cirilo S. Lemos)

A meta de voltar a ler/resenhar mais fica bem mais fácil lendo livros como O Alienado (2012), romance de Cirilo S. Lemos. É uma leitura para quem não tem medo da sensação de pisar em falsoVejo nela tudo de positivo que a literatura de Ficção Científica brasileira pode oferecer de bom ao leitor. Temos uma obra com uma série de referências que foram tão bem digeridas e devolvidas ao leitor que confere uma aura de clássico. Essa ousadia felizmente foi aliada a qualidade resultando num grande livro que só não é mais falado, certamente por ser brasileiro.

A forma conta mais aqui do que a estória. O romance se apresenta com fragmentos de momentos diferentes da vida do protagonista com nome de filósofo, Cosmo Kant. Temos, no seu presente, um abalo após ver um sujeito sair do seu espelho enquanto é perseguido pelos Metafilósofos uma espécie de ceita que controla a distópica Cidade-centro com mãos de ferro e máscaras de couro. Em outros fragmentos, há momentos da infância de Cosmo e trechos de um romance que ele chegou a rabiscar, além de criativas passagens em quadrinhos. A cada trecho, cabe ao leitor montar o quebra-cabeças. Temos o efeito constante de relembrar das partes anteriores, que recebem novos sentidos a medida que a trama se (des)enrola. Temos um excelente uso das referências, a personagem Maria Cecília é um bom exemplo disso. Ela se parece com as mulheres das histórias de Philip K. Dick (manipuladoras, soando como a voz da consciência) e a forma como ela se encaixa na estória eleva o uso de um arquétipo manjado de personagem.

Vale apontar que, para uma estória complexa e não-linear (que pode assustar o leitor casual) não temos aqui o pedantismo do infodump (contextualizações excessivas). Temos o essencial para entendermos os elementos distópicos, a troca de identidades e o questionamento da realidade. Este último é um tema recorrente no meu autor favorito, Philip K. Dick e aqui vemos o mesmo tema numa forma própria. Foi uma experiência muito boa ler tudo isso em nossa língua (sendo mais específico, em uma obra não-traduzida) e com nosso modo de falar. Isso descomplica o que não precisa ser complicado e deixa o caminho livre para mergulhar nesse labirinto bem construído. Quando ao final, temos as questões resolvidas e deixa um bom impacto após a leitura, algo como: "Cirilo, seu fdp!".
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terça-feira, 31 de outubro de 2017

Resenha #67 - Anacrônicos (Luiz Bras)

Um livro é especial quando você o recebe de presente ou quando ecoam na sua mente após a leitura. "Anacrônicos" é especial para mim pelos dois motivos. A novela de Ficção Científica brasileira, foi lançada este ano de forma independente por Luiz Bras (pseudônimo de Nelson de Oliveira) que é encontrado nas redes pelo vulgo Paisagens Personas

Em primeiro lugar, Anacrônicos é extremamente bem escrito. Passa um desconforto pela forma narrativa que usa, como se você relembrasse momentos vividos contando em sua própria cabeça. Essa distorção na percepção do tempo acompanha os personagens, um grupo de jovens, que tentam lidar com a aparição de mortos-vivos (que não são zumbis) mas seres sintéticos "de um tipo de borracha industrial" extraídos das lembranças dos entes mais queridos que passam a ocupar os cômodos das casas e repetem ações das mais triviais diária e inexoravelmente. O foco é na dimensão íntima dos personagens, conseguindo abarcar o sentimento de caos no mundo todo. Tudo isso abarcando ironias, dores e desespero das pessoas que tentam levar suas vidas meio ao cotidiano e o caos que toma conta. A estória se passa num futuro próximo, quando todos nós estaremos um pouco mais velhos, se vivos. Temos uma aula de como situar uma estória no futuro sem forçar, sem infodump. Para uma sociedade que vive fugindo do seu passado, cansada de carregar o peso da própria bagagem, e o revive de forma cada vez mais ordinária, o livro é muito pertinente.

A forma do texto é curta e reflexiva, seria um erro chamar de prolixo pois ele tende a ser desconfortável (se você espera uma narrativa linear padrão). Vejo contundência e um potencial para quem puder refletir sobre si mesmo e o passado. Enfim, um livro curto que desafia qualquer busca pelo consumo rápido já é uma ironia em si. Pontos para o autor!

P.S.: O autor mantém um blog com resenhas de livros de ficção científica brasileira, que está se tornando um verdadeiro acervo de impressões do que é produzido no Brasil! Vale a leitura. https://ficcaocientificabrasileira.wordpress.com/
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quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Resenha #66 - O Feitiçeiro de Terramar (Ursula K. Le Guin)

Olá! Retorno para resenhar outro livro, e como sempre procuro fazer, alternando entre livros de estilos diferentes dentro do que gosto de ler. Desta vez, saindo do clássico cyberpunk para a Fantasia. Contudo antes de encarar um tijolão de fantasia clássico optei por uma breve mas profunda viagem que Ursula Le Guin traz em O Feiticeiro de Terramar. Diferente das discussões densas de Os Despossuídos ou A Mão Esquerda da Escuridão, temos um direcionamento para um público mais jovem sem perder a jornada de descoberta do protagonista. 

A estória conta sobre Gavião, ou Ged, um grande mago de Terramar, antes de ser um grande mago. Gavião aprende desde muito novo as artes mágicas porém se torna rapidamente arrogante, rancoroso e impulsivo até que se torna vítima de um grande erro que o obriga a partir numa jornada que o leva a vários cantos desse mundo. Terramar é tomada por ilhas, onde vemos um mundo ricamente criado pela autora que nos dá olhos de viajante enquanto acompanhamos Ged. Essa riqueza nos tira das dicotomias manjadas e abre horizontes como um marinheiro pelo mar desconhecido. A jornada de Ged pelo autoconhecimento é a formação de seu caráter, ao qual acompanhamos minuciosamente sua transformação, desde a infância até o mago clássico, comumente apresentado já em sua melhor forma.

A relação da autora com a palavra (para além do obvio, por ser uma escritora) aparece na importância que ela tem para o mago. Afinal é com ela que ele conjura feitiços. É com ela também que se dá nome as coisas e as pessoas, o meio para o conhecimento, a cultura dos povos que habitam esse mundo e sem ela o mago é impotente. Algumas palavras passam pouco percebidas na obra, são as pequenas subversões aos clássicos que tornam a obra muito relevante, como a cor de Ged e dos violentos invasores do império Karg. O que mostra que um livro para jovens não significa ser raso ou simplificado. Contudo, o fato da estória ser curta e centrada no mago Gavião, deixa os demais personagens com pouco espaço e evoluírem. Há pouco espaço para subtramas, ainda que o encontro com um dragão rendesse um conto isoladamente. O mapa e o posfacio são materiais auxiliares preciosos que vieram nesta edição. A própria autora comenta a importância deles e visualizar no mapa nos submerge neste mundo e num livro que não chega a 200 páginas ganha ainda mais importância. Vale a leitura para ficar longe da fantasia batida das batalhas e guerras e próximo da magia no seu estado mais bonito.
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domingo, 15 de outubro de 2017

Resenha #65 - Reflexos do Futuro (Bruce Sterling - Org.)

Olá leitores, onde quer que estejam após minha longa ausência, estou de volta tentando retomar o blog. Fiquei sem postar pois não estava conseguindo concluir leituras para resenhar. Isso ocorreu por diversos motivos desinteressantes para vocês (trabalho + preguiça), pois nenhum está ligado a Ficção Científica ou Fantasia. Enfim, vou retomar os trabalhos, pois tenho planos (mediocremente audaciosos) de retomar o ritmo de leituras a um minimo para voltar a postar regularmente. Para este retorno, nada melhor que um clássico do meu subgênero preferido, o Cyberpunk.

O livro é "Reflexos do Futuro", coletânea organizada por Bruce Sterling. É a única tradução conhecida para a língua de Camões para "Mirroshades", a coletânea Cyberpunk por excelência. Nela, Bruce Sterling começa com uma introdução que não apenas introduz aos 12 contos mas ao Cyberpunk como movimento cultural, na qual chamava-se, no seu início, apenas de "O Movimento".

Pretendo abordar conto a conto, mas antes falar da obra em geral. A tradução é muito estranha, não pela tradução em português-PT, mas pela constante tradução de coisas intraduzíveis que poderiam ser mantidas em inglês. Isso atrapalha a leitura de certos contos, pois há jogos linguísticos, gírias e referências a cultura pop que passam batidas e que fazem parte da forma de escrever dos cyberpunks. Pulando-se a esses detalhes a leitura compensa, pois as histórias valem a pena, todas elas. Vamos tecer um breve comentário conto a conto.

O contínuo de Gernsback (William Gibson): Este conto já foi resenhado, isoladamente no blog. Confira aqui.


Olhos de Serpente - Snake Eyes (Tom Maddox): George Jordan é um veterano de guerra estadunidense num futuro próximo indefinido (que poderia ser muito bem 2017), que teve um aparato militar implantado no cérebro chamado Serpente. Então, o governo o abandonou e George recorre ao submundo para remover o dispositivo, o que o leva a uma companhia pirata sediada na órbita terrestre. A dicotomia entre o fetichismo militar e a repulsa pelo aparelho implantado tornam o conto muito fiel ao que se imagina do cyberpunk.


A pecadora - Rock on (Pat Cadigan): A única mulher participante da coletânea nos traz um aventura frenética de uma pecadora (sinner, numa analogia a sintetizador) talvez rápida demais talvez por ser uma introdução do seu romance futuro, "Sinners". É interessante ver a relação da música com o cyberpunk neste conto e o tom escrachado e sensual (sensorial e sexual) da narrativa. Muito bom.


Contos de Houdini (Rudy Hucker): Não há nada nessa estória que remeta aos estereótipos do cyberpunk e acredito que o autor do conto sequer os buscou, contudo esta curta estória resume a vida agitada do futuro próximo (o nosso presente?), cercada pela câmera do Realitty Show da vida real. Posso estar falando besterias mas esse "slice of life" de Houdini dispensou demais alegorias.


400 rapazes (Marc Lidlaw): Em um futuro com uma sociedade destruída acompanhamos um menino mudo, membro de uma gangue, entre muitas, onde elas dominam o que sobrou da civilização. A narrativa constrói rapidamente sobre neologismos, gírias (tradução atrapalhou muito nesse ponto) e um ambiente underground. Esse ambiente undergound é a característica que mais remete ao cyberpunk como imaginamos. 


Solstício (James Patrick Kelly): Tony Cage fez, muito jovem, fortuna na industria de drogas recreativas e decidiu gastar uma parte dessa fortuna em um clone feminino seu (Wynne) e, desde então, passou metade de cada ano congelado almejando estar adulto quando ela estivesse adulta também. O conto desenrola a relação de Tony e Wynne e, do passado de Tony que o fez gerar sua fortuna e por uma obsessão do personagem pelo Stonerange. O personagem não tem carisma, o que prejudica o envolvimento com a estória (enquanto entretenimento), mas é competente em passar toda a solidão de Tony e sua relação doentia é desconfortável de se ler, ponto para o autor. 


Petra (Greg Bear): Petra é um conto bizarro, que se lido hoje seria facilmente classificável como "New Weird", e que não tem nada do que se espera quando se fala de cyberpunk. Trata-se de um mundo onde Gárgolas de pedra e humanos convivem em tensão e preconceito. Há poucas mulheres, que são freiras, e há híbridos de gárgolas com humanos, que são tratados como a escória dessa sociedade. O dilema de ser metade não-humano é totalmente pertinente ao cyberpunk mas numa roupagem gótica, uma das partes que formaram o cyberpunk. O conto é repleto de reflexões sobre o mundo e a busca por ídolos mas vai decepcionar aqueles que esperam implantes neurais e samurais urbanos. De alguma forma, isso vale para quase todos os contos do livro. 


Até que as vozes humanas acordem (Lewis Shirner): Não sei explicar o quão malabarismo da minha parte seria descrever este conto como um biopunk, por mostrar experiências genéticas bizarras ou que tenha a qualidade de ter um mistério razoável na estória, mas a estória parece deslocada, até em meio as estórias que se distanciam da estética conhecida do cyberpunk. Ainda sim, está longe de ser um conto ruim.


Zonalivre - Freezone (Jon Shirley): É o maior texto do livro. Aqui a estória se passa numa cidade ancorada na costa da África onde a unica lei é a lei do capitalismo mais selvagem. Nela acompanhamos a estória de Rickenharp, líder de uma banda medíocre que busca estar sempre fora da moda. Retrata bem a sensação de deslocamento do sujeito na cidade mas a noveleta peca na construção de uma estória envolvente. O protagonista foge loucamente, mas parece que se trata apenas movido por sua paranoia. Fica valendo mais pelo turismo pela cidade cyberpunk como imaginamos (e mais interessante) bem descrita, apesar de algum infodump no início, e personagens que não contribuem para a estória se tornar interessante.  


Vidas de pedra - Stones Live (Paul di Fillipo): Stone vive na "Confusão", local que resume toda a baixa qualidade de vida do futuro cyberpunk. O autor passa toda o imediatismo de uma vida quase animal e sem sentido, que não o da própria sobrevivência. Até que um dia Stone recebe uma proposta de emprego da misteriosa empresária e passa a ver o mundo com novos olhos e aprende a raciocinar. O conto mostra uma transformação muito interessante em Stone que culmina um bom final.


Estrela Vermelha, Órbita de inverno (Bruce Sterling e William Gibson): O conto se passa num futuro onde a URSS venceu a corrida espacial colocando o primeiro homem em Marte, contudo esses dias gloriosos já são passado. A estação espacial Soyus está prestes a ser desativada pelo politburo mas o Coronel Korolev, herói celebre por ser o primeiro homem em Marte e comandante da estação espacial, não quer encerrar sua missão de décadas e dá início a um motim. O que chama a atenção no conto é a perspectiva de abandono da corrida espacial e de declínio da URSS antes de sua queda. Contudo, a realidade se revelou mais rápida que qualquer um poderia imaginar: A URSS caiu em 1991, poucos anos depois da escrita do conto (metade dos anos 1980). Outra coisa curiosa, são os EUA descritos como uma nação em decadência também, o que me faz imaginar que este conto é do mesmo universo que o outro conto de Sterling (Vemos as coisas de modo diferente). Quanto a forma como os soviéticos são retratados, segue a cartilha sem muita imaginação: O protagonista soviético que se amotina (Coronel Korolev) é um individuo honrado e desiludido com o governo, o que choca de frente com a burocracia estatal que o reprime. Os estadunidenses, em sua rápida aparição, são oportunistas e aventureiros. Esse aspecto reduz a estória a uma versão FC dos livros de Tom Clancy (principalmente "A Caçada ao Outubro Vermelho") e eu esperava mais da dupla William Gibson e Bruce Sterling num conto juntos, mas está longe de ser um conto ruim, pelo contrário, vale a leitura e muito.    


Mozart de Óculos Espelhados (Bruce Sterling e Lewis Shirner): Conto divertidíssimo. Dois viajantes do tempo retornam ao passado onde encontram Mozart jovem e o apresentam a própria música antes de tê-las composto. Resultado: Mozart, não se interessa mais em compor e quer apenas fazer sucesso no nosso tempo com versões sintetizadas de suas próprias músicas. Nenhum viajante do tempo demonstra qualquer senso de responsabilidade com a alteração da história e a mudança de fatos parece inalterar o lugar de onde os viajantes vem, o "Mundo Real". O conto conversa, usando o humor, com a a fluidez da pós-modernidade. Há colagens de diversos tempos da história, de Maria Antonieta lendo Vouge até um General de Genghis Khan, como mercenário numa Harley. A falta de perspectiva com o futuro que os habitantes desse passado é um ponto interessante no conto, uma vez que todos sabem como seriam os eventos, como a Revolução Francesa, e que aquilo nunca irá acontecer da mesma forma.


Extra: Esta obra foi resenhada em vídeo no canal Terra Incógnita, do Fábio Fernandes, que fez uma verdadeira aula sobre Cyberpunk.

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terça-feira, 16 de maio de 2017

Resenha #64 - Pretérito Perfeito (Gustavo Araújo)


Pensei dua vezes antes de resenhar "Pretérito Imperfeito" neste blog, por ser dedicado exclusivamente a Ficção Científica e a Fantasia e não se tratar de uma obra que se encaixaria imediatamente no que convencionamos chamar de "Fantasia" ainda que o livro não tenha tal pretensão. O fantástico não é exclusividade de nerd e achei melhor expandir os horizontes e mostrar o fantástico onde quer que ele esteja. Eis então a resenha de "Pretérito Perfeito", romance nacional escrito por Gustavo Araújo e publicado pela editora Caligo.



Meu exemplar foi um presente da Maria Santino (que por sinal escreve muito bem também) e uma surpresa maravilhosa. Isso, por dois motivos: O primeiro, já sabia da qualidade do autor pelos contos que publica nos desafios literários do blog Entre Contos (dos quais participo há mais de um ano) e, o segundo, por haver uma boa parte dedicada a escrita epistolar. Pretérito Imperfeito atendeu minhas expectativas. Divagações a parte, vamos a estória.



Na estória acompanhamos Toninho, um menino tímido e em conflito com o pai, Seu Pedro. Ele gosta de observar pássaros e tem um refúgio na floresta nos arredores da fictícia cidade de Porto Esperança, no Paraná. Nesse refúgio ele acaba encontrando Cecília: Uma menina inteligente e que gosta de escrever. Ela também busca abrigo por conta de seu pai que está envolvido em atividades misteriosas e que ela mesmo não compreende. Os encontros entre Toninho e Cecilia, são permeados por cartas de Cecilia a sua amiga Carol e garantem um aprofundamento da personagem, há uma referência assumida a Anne Frank. A relação de Toninho com seu Pai é bem desenvolvida a medida que a estória dele também é contada.



O pano de fundo acontece em dois tempos, nos anos 1930, durante a Intentona Comunista e os anos 1960, e durante a Ditadura Civil-militar de 1964. O contexto histórico não sufoca o drama dos personagens mas sim cumpre a função trazer a dureza daqueles tempos com a doçura da infância. Elementos que Gustavo traz de forma intensa através dos seus personagens. Difícil acertar a mão com este tipo de estória sem soar piegas ou apelativo, contudo este livro fez sérias rachaduras no meu coração de pedra. A qualidade da escrita é inegável. Gustavo consegue fazer cenas simples, cheias de significado e emoção. Nessa obra acredito que encontramos Gustavo no melhor momento. Digo isso pois o autor é um excelente contista, mas muito melhor romancista.



Difícil falar mais correr o risco de estragar a experiência da leitura, pois a minha introdução a resenha já adianta que existe um elemento do fantástico na estória e o os textos introdutórios também não adiantam muita coisa. Contudo, o livro não é depende das reviravoltas pois tem uma narrativa muito consistente e envolvente para quem se deixar levar. Acredito que a única coisa que pode atrapalhar a apreciação da obra é esperar dela algo que ela não é. Vale ler de mente aberta, ainda mais para quem tentar comparar com as obras que costumo resenhar aqui. Enfim, o livro está mais que recomendado.



Para uma resenha, com spoilers e muito mais qualificada que a minha recomendo a de Eduardo Selga. https://entrecontos.com/2015/10/02/o-menino-que-queria-lacar-a-lua-resenha-de-preterito-imperfeito-eduardo-selga/
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terça-feira, 9 de maio de 2017

Resenha #63 - Jogo Terminal (Floro Freitas de Andrade)

"Jogo Terminal" é uma Ficção Científica Brasileira, escrita por Floro Freitas de Andrade publicada em 1988 pela editora Melhoramentos. A arte da capa e o cenário da estória sugerem um cyberpunk, porém nem tudo que tem chips é cyberpunk.

A Estória se passa em um Brasil que a séculos não existe mais. Os territórios e a vida social e politica que conhecemos foi alterada. Tudo gira entorno de uma inteligência artificial que governa o mundo, chamada M-Max. Os humanos são apenas tolerados e utilizados para estudos. Roval, o protagonista da estória é um deles. Ele  é um escritor e como pessoa sensível (é o que se espera de escritores) acaba sendo um objeto da atenção de M-Max, que sabemos ser uma máquina que almeja sentir. A estória se passa praticamente toda dentro do "ovo quadrado", a cabine onde Roval vive confinado. Tão preso que não se tem ideia de como é a vida fora dali.

Somos conduzidos, durante a narrativa, somente pelos pensamentos de Roval. Infelizmente intercalando da primeira para terceira, sem aviso e sem motivo aparente. Isso pode ser uma questão de estilo da escrita, mas acredito que aqui atrapalhou a imersão na estória. Acompanhamos a rebeldia contra a máquina (o não-humano) e contra o que já fomos um dia, o que confere um ar de pessimismo a obra, característico das distopias.

O autor faz muitas referências ao momento final da ditadura no Brasil, que permeia o momento da obra no final dos anos 1980. A escolha da ocupação de Roval (escritor) acabou tornando a trama frágil e com pouco proposito. Temos muitos insights de Roval: alguns interessantes e outros maçantes mas tudo dentro de um desenrolar lento e isso é muito ruim para um livro de 125 páginas. A princípio, esperamos um duelo com uma inteligência artificial superior, mas M-Max acaba ficando escanteado da estória e a trama não se desenvolve até o momento do fatídico encontro entre Roval e M-Max.

A trama para o tempo todo para descrições das estórias que Roval escreve. Elas são, forma de enxertos na narrativa contemplativa de Roval. Nesses enxertos, Roval desenvolve personagens melhor que o próprio Roval é desenvolvido como tal. Entre eles: Robledo, presidente corrupto do Brasil; Gerrard, exilado da mesma ditadura na França; José, um homem cego que é traído pela mulher e Hans, um cientista que faz uma descoberta incrível com sua pesquisa em vaga-lumes. As páginas finais dão conta de amarrar a es estórias de Roval entre si, e com a estória de Roval e M-Max, mas tudo isso a custa de um desenvolvimento lento e que apenas flertou com a Ficção Científica. Tanto que capa do livro menciona ser uma "fábula sobre a liberdade". Esperava que fosse exagero de um editor desaviado pois, a fábula tende a passar a mensagem em detrimento da estória mas infelizmente é o que acontece nesta obra.

P.S.: Uma curiosidade sobre esta obra é que não consegui nenhuma informação sobre o autor ou de outra obra escrita por ele. Talvez fosse um pseudônimo. Se você souber de algo, comente no blog.
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terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Resenha #62 - Estação Perdido (China Mieville)

Estação Perdido é uma das obras mais conhecidas de China Mieville e a primeira da trilogia Bas-Lag, que ainda tem "The Scar" e "Iron Council", que ainda não foram lançadas no Brasil. Ela é um dos marcos do chamado "New Weird", subgênero da literatura fantástica que busca causar estranhamento e os mundos de China Mieville exatamente assim.

Estação Perdido, em especifico, é uma Fantasia Urbana passada na cidade fictícia de Nova Crobuzon. A estória começa com Yagahrek, um membro da raça Garuda, que contrata o cientista Isaac Grimnebulin para construir invento que possa fazê-lo voar novamente. Há Lin, a namorada Kephri de Isaac, que mantem um romance indiscreto. As coisas começam a dar errado quando um dos experimentos e Isaac foge do controle, ameaçando toda a cidade de Nova Crobuzon. Esta, em verdade, é a protagonista da estória.

Mieville conduz o leitor a uma verdadeira exploração sensorial, antropológica e social pela cidade. É sensorial porque é possível sentir cada tipo diferente de fedor que ela exala, influência do Steampunk; Antropológica, pois existe uma coexistência tensa entre as diversas raças e suas culturas perpassando as relações entre os personagens. Além dos humanos, existem Garudas [homens-pássaros], Keprhis [uma raça de insetos onde apenas as mulheres são antropomórficas e inteligentes], Vodyanois [especie de homens-sapo], entre outros. Todos eles foram tirados de diversas culturas, como o deus egípcio Keprhi, porém nada foi aproveitado de sua mitologia; e é social devida as relações sociais repressivas dos mandantes de Nova Crobuzon, que não poupa os cidadãos condenados a terrível punição de serem "Refeitos", ou seja, passar por transformações mágicas medonhas como castigo ou para se tornarem armas ciborgues do governo.

Neste aspecto, a influência política de esquerda do autor se faz presente, mas não chega a ser invasiva. Torna-se muito perceptivo apenas aqueles que procurarem ativamente por elas, portanto não se trata de uma excepcionalidade. Nenhum autor deixa suas posições na gaveta quando resolve escrever um romance. A crítica social é latente e considero muito bem vinda, para pensar nossas cidades e nossa sociedade, mesmo se tratando de um mundo de fantasia.

O destaque desta obra, contudo vai para a cidade de Nova Crobuzon, como personagem. Quem conclui a leitura de Estação Perdido, certamente ficará com a impressão de ter viajado para uma cidade, conhecido seus moradores, ruas e vivido alguns de seus dramas. É muito mais do que viagens assépticas, cheias de selfies em monumentos que se faz presencialmente hoje em dia, não é verdade?!
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terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Resenha #61 - A Segunda Pátria (Miguel Sanches Neto)

[SEM SPOILERS]
"A Segunda Pátria" é um romance de História Alternativa brasileiro, subgênero que se dedica a inventar realidades alternativas, onde a história foi modificada bruscamente por um evento tecnológico e/ou político que não aconteceu. Nesse livro, o autor constrói um Brasil onde o presidente Getúlio Vargas teria se aliado a Alemanha nazista em 1939 ao invés dos Estados Unidos. Essa premissa é baseada na existência de boas relações que Vargas tinha com esses países antes do início do conflito.

O estopim é aceso quando as Leis de Nuremberg, passam a ser aplicadas na região Sul do Brasil, tornando os negros seu principal alvo. A região passa a ser um ponto de expansão do nazismo aproveitando-se da presença da colonização alemã para proliferar. A estória segue vários pontos de vista, mas é centrada em dois personagens principais: Aldopho Ventura, um engenheiro educado e totalmente imbuído na cultura alemã que vê sua liberdade restringida gradualmente por ser negro; Hertha Schieffer, uma descendente de alemães que descobre rejeitar o nazismo quando o vê na prática. Em menos espaço, os pais de Adolpho, Julius Meinster (um nazista convicto) e o próprio Getúlio Vargas, além de seu Guarda Costas pessoal, Gregório. 

A estória produz muitas reviravoltas mas não esperem um "thriller" político, de espionagem ou qualquer coisa nesse sentido, o central é o drama dos personagens principais. Adolpho e Hertha encarnam a contradição do discurso nazista. O domínio da literatura alemã de Adolpho e a boa posição de engenheiro o pintam como um alvo ameaçador e ele sofre uma transformação radical durante a narrativa. A primeira parte lembra, "O processo" de Kafka, porém, diferente de Josef K., Ventura sabe o motivo de ser perseguido mas não consegue imaginar a que ponto tudo aquilo chegaria, assim como fora com os judeus na Europa. Já Hertha, sofre o que os alemães também sofreram naquele período: denuncismo e desconfiança de todos os habitantes da cidade, onde o bom cidadão é aquele que participa denunciando e os indiferentes são culpados. Ela também se mostra hora uma mulher independente, com domínio da sua corporalidade, hora uma ninfomaníaca presa a seu desejo. De qualquer forma, ambas as opções a tornam condenável ao nazismo.

O que pode atrapalhar a leitura é a quantidade de reviravoltas, talvez demais, para um livro que não foca na ação ou na política. Contudo, é um livro de leitura fluída, principalmente se você gosta de História do Brasil que são bem feitos apesar de aparecerem tão pouco. Os capítulos curtos e as datas em cada um das cinco partes, ajudam o leitor a não se perder, pois a estória é não-linear.

"A Segunda Pátria" não poupa o leitor de cenas de tortura e morte. Trata-se de um período de guerra, "um pesadelo", como diz o autor no prefácio, transportado para a realidade brasileira que foi palco desses combates mas que consegue expor uma terrível faceta que só depende de condições históricas adequadas para se manifestar, inclusive na nossa realidade, hoje.

[COMENTE COM SPOILERS, SE PREFERIR, MAS AVISE DE ALGUMA FORMA, POR FAVOR]
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terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Resenha #60 - TAZ - Zona autônoma temporária (Hakim Bey)

Olá. Esta é mais uma obra de não ficção no blog. Desta vez vamos falar de "TAZ - Zona Autônoma Temporária" de Hakim Bey, pseudônimo adotado pelo poeta, historiador anarquista, entre outras coisas, Peter Lamborn Wilson. Já resenhamos uma antologia de contos o tinha como um dos seus organizadores, Futuro Proibido. A obra compartilha do mesmo entusiasmo e temor com o início da proliferação da internet que o cyberpunks dos anos 1980, embalados pelo avanço do neo-liberalismo e a diminuição da participação do Estado nas decisões mundiais. Não há conceitualização clara do que é a TAZ, por suas palavras buscarem evitar um conceito engessador. A própria forma de exposição do conceito já é uma mensagem em si, ainda que o autor vá e volte nas linhas de raciocínio, tornando o livro, não apenas um manifesto, mas um pequeno mosaico. Como todos os livros de não-ficção do blog, é uma recomendação para quem gosta de pensar a Ficção Cientifica para além do mundo ficcional.

O autor começa abordando o conceito de "Utopias Piratas", referindo-se aos assentamentos - como ilhas escondidas no caribe ou salé/rabat no atual Marrocos - dos piratas e corsários do século XVIII que se ajudavam fora da esfera do Estado, como numa comunidade internacional e informal/criminosa. Hakim Bey cita a obra "Piratas de dados" (Ele se referia ao título original Islands in the Net/ "Ilhas na rede") de Bruce Sterling, como exemplo de zonas emergindo da ausência de força do Estado como conhecemos hoje. Ainda que as décadas seguintes não confirmassem essa visão, tanto o livro de Sterling como TAZ ajudam a visualizar essas zonas operando. No livro Utopias piratas: Mouros, Hereges e Renegados o autor aprofunda o caso de Salé/Rabat. 

O autor chama os que contestam o Estado a sair da apatia que os faz aguardar por um evento de grande porte. Só então começa a tatear as rachaduras que podem ser exploradas longe do alcance do Estado. É ai que entra a TAZ como uma tática que emerge dessas falhas através de uma psicotopologia da vida cotidiana. Nisso consiste em "desviar" das instituições como a Família e o Trabalho e buscar formas onde não há hierarquia. Entra o conceito de "nomadismo psíquico", uma rejeição ao "modelo europeu", como conceito vial para aceitar a TAZ.

O autor é sereno ao afirmar que a internet é apenas uma ferramenta para a TAZ. "Ela vai fazer uso do computador porque o computador existe, mas também usará poderes tão completamente divorciados da alienação e da simulação que lhe garantirão um certo paleolitismo psíquico, um espírito xamânico primordial que vai 'infectar' até a própria net (o verdadeiro sentido do cyberpunk, como eu o entendo)." p.28. Havia uma perspectiva, nos anos 1980, que espaços autônomos emergissem pela internet para desafiar ou esvaziar o Estado de seu poder, como no mundo ficcional de Sterling de Piratas de dados. Porém os eventos pós-11/09 nos EUA, mostraram todo o poder do Estado sobre a internet. 

Como a TAZ não é dependente da internet, o autor vai ao período colonial buscar protótipos de TAZ.As relações de poder entre as potências nas colônias, levaram muitos a fugir do mapa conhecido e buscar zonas não-cartografadas, áreas de escape, não apenas físicas mas das instituições do Estado. O autor também busca na efêmera República de Fiume como o exemplo mais recente de TAZ. Bey delimita a TAZ como uma tática do desaparecimento como forma de exercer a liberdade, e não apenas lutar para alcançá-la. 

Por fim, são mencionados alguns pequenos "gestos negativos" como exemplos que nos aproximam da TAZ, como não votar. Outros são tateados e abrangem o trabalho, a igreja, a família, o lar e da arte e termina o texto indicando caminhos internos para nos aproximarmos dessa tática.

Sobre a edição lida para a resenha: A obra é curta, mas carregada de conceitos não esmiuçados, pois não se trata de um trabalho acadêmico e sim um manifesto. Uma carta de intenções da TAZ e não uma radiografia da mesma. Conclama a ação e não a sua contemplação e para isso se agarra ao seu momento histórico, da internet florescendo e da rebeldia do movimento cyberpunk.

Versão em .PDF de TAZ - ZONA AUTÔNOMA TEMPORARIA
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terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Resenha #59 - Brasyl (Ian McDonald)

"Brasyl" de Ian McDonald é, apensar de uma das linhas narrativas parecer um romance histórico, uma Ficção Científica sobre mundos paralelos e uma lamina capaz de cortar qualquer coisa.

O estória segue três personagem em tempos diferentes, começa com Marcelina Hoffman, uma produtora de TV em um canal sensacionalista num Brasil de 2006, que procura Barbosa, o goleiro da seleção brasileira da copa de 1950, para mais um de seus reality shows. Depois conhecemos Edson Jesus Oliveira de Freitas um paulistano malando que agencia modelos de dia e se traveste de noite em um Brasil cyberpunk em 2032 cercado por tecnologia de vigilância que se envolve com Fia, que faz parte de uma gangue que usa tecnologia de computadores quânticos; e por fim o padre jesuíta Luis Quinn que em 1732 veio ao Brasil em missão dissuadir um outro padre que está construindo um império rebelando-se da coroa portuguesa e da igreja na Amazônia.

O autor constrói cada mundo separadamente para depois tecer ligações sutis que vão crescendo exponencialmente até que não haja essencialmente nenhuma diferença entre eles. A física quântica é argumento para unir os mundos e as estórias, mas também mostrá-los como são tão paralelos como contraditórios. Cada personagem, assim como nós, carrega suas contradições, muitas vezes estranhas por causa da realidade em que vivem. O padre que é sacerdote e assassino. O malandro que se apaixona por uma menina e vive uma vida paralela como travesti rainha do funk e fantasias homoeróticas. A loura executiva de classe média, consumista fútil, que busca a malandragem dos capoeiristas. A quem se propõe julgá-los, resta olhar as nossas próprias contradições e ver que os personagens não são tão absurdos quanto podem parecer. Além dos personagens esses paralelismos estão na organização do livro, alternando as linhas narrativas, além do próprio mistério que descobrem durante suas aventuras.

A edição brasileira merece destaque pois a formatação diferente para cada tempo narrado facilita o leitor a não se perder no caminho. Destaque para as passagens narradas em 1732 onde as letras parecem impressas em aparelhos antigos e as páginas possuem manchas simulando envelhecimento, como se fosse um manuscrito. Geralmente evito falar da tradução pois não tive contato com o material em inglês, não sendo possível opinar até que ponto foram acertos do autor sobre o Brasil ou se teve uma mãozinha do traduzir (Fábio Fernandes) para não fazê-lo passar vergonha. Independente disso o livro entregue ao leitor brasileiro é preciso o suficiente para convencer que esse Brasil inventado poderia ser o nosso.

p.s. Achei duas artes do Devianart, inspiradas no "Brasyl". Ambas de crisfedor 


Fia e Edson na cena em que eles se conhecem

Edson fugindo da polícia
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terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Resenha #58 Sociedade do cansaço (Byung-Chul Han)

[LIVRO DE NÃO-FICÇÃO] Olá. Trago novamente um livro de não-ficção e esse já é o 4º. Pretendo trazer mais, por dois motivos: Não acho que vale a pena criar outro blog só para isso e, principalmente, acho válido trazer obras de não-ficção para que autores/leitores de Ficção Científica especulem sobre a sociedade atual e não fiquem satisfeitos apenas com as especulações imaginadas nas obras antigas, por melhores que sejam. Sendo assim, o livro dessa semana é "Sociedade do cansaço" escrito pelo filósofo sul-coreano, radicado na Alemanha, Byung-Chul Han. É um livro muito curto, com 80 páginas, mas de muita relevância.

É dividido em sete curtos capítulos onde Han traça uma mudança na estrutura psíquica de nossa sociedade. Começa falando da Violência Neuronal, que é a forma de doença, que substituiu as bacteriológicas e virais do tempo da Guerra Fria. A depressão e o transtornos de atenção são exemplos dessa violência. A sociedade inteira age se punindo num excesso de positividade.    

O autor afirma que o poder não é mais exercido em forma de negatividade. Prisões, quartéis e fábricas não são os maiores instrumentos para impelir o indivíduo a produtividade e sim o próprio se cobra para isso, entra o conceito de "sociedade de desempenho". Os depressivos seriam aqueles, que não conseguem lidar com o fracasso em uma sociedade em que somos levados a crer que "tudo é possível". "a sociedade disciplinar ainda está dominada pelo 'não'. A sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados." (p.24-25.)

Han invoca Nietzsche para propor uma pedagogia do ver, de uma visão contemplativa que não cede a todos os impulsos aos quais somos expostos. Esse mundo onde somos bombardeados com estimulos, principalmente visuais, é o nosso mundo, não apenas os imaginados na Ficção Científica. É a pervasividade da tecnologia que dá o alcance necessário para que sejamos afetados dessa forma. Ora, se não podemos escapar dos estimulos de positividade, assim como Case, em Neuromancer, que não consegue ficar longe da Matrix, nos resta o caminho da depressão e encher a cara nos bares de Chiba City. 

O autor usa o conto "Bartleby, o escriturário" de Herman Melville, como metáfora o trabalho como fonte da violência neuronal e as doenças psiquicas de nosso tempo. O conto traça um quadro de depressão e opressão, vivido pelo personagem principal de forma parecida com as distopias clássicas da FC (1984 e Farenheit 451, por exemplo) ainda com a sociedade disciplinar dos muros, guardas, fábricas. Contudo, nem Melville, nem os autores da FC conseguem conversar adequadamente com o depressivo da sociedade do desempenho. Fica a questão em aberto, pois há muitas obras da FC que não li ainda.

Essa "sociedade do desempenho" nos faz exigirmos de nós mesmos uma função multitarefa que nos assemelha aos computadores. Contudo, diz o Han"a atividade que segue a estupidez da mecânica é pobre em interrupções. A máquina não pode fazer pausas. Apesar de todo o seu desempenho computacional, o computador é burro, na medida em que lhe falta a capacidade de hesitar" (p.53-54)

A falta de capacidade de hesitar, de não conseguirmos mais contemplar e focar em uma coisa, é um caminho para a obediência cega aos estimulos. Os temas antigos da Ficção Científica tratam de tecnologias que se rebelam contra a humanidade mas o grande problema é justamente que essas tecnologias não tem a capacidade de hesitar, assim como nossa capacidade de hesitar é afetada na sociedade do desempenho.

Links para download
BARTLEBY, O ESCRITURÁRIO, Herman Melville
SOCIEDADE DO CANSAÇO, Byung-chul Han
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