domingo, 15 de outubro de 2017

Resenha #65 - Reflexos do Futuro (Bruce Sterling - Org.)

Olá leitores, onde quer que estejam após minha longa ausência, estou de volta tentando retomar o blog. Fiquei sem postar pois não estava conseguindo concluir leituras para resenhar. Isso ocorreu por diversos motivos desinteressantes para vocês (trabalho + preguiça), pois nenhum está ligado a Ficção Científica ou Fantasia. Enfim, vou retomar os trabalhos, pois tenho planos (mediocremente audaciosos) de retomar o ritmo de leituras a um minimo para voltar a postar regularmente. Para este retorno, nada melhor que um clássico do meu subgênero preferido, o Cyberpunk.

O livro é "Reflexos do Futuro", coletânea organizada por Bruce Sterling. É a única tradução conhecida para a língua de Camões para "Mirroshades", a coletânea Cyberpunk por excelência. Nela, Bruce Sterling começa com uma introdução que não apenas introduz aos 12 contos mas ao Cyberpunk como movimento cultural, na qual chamava-se, no seu início, apenas de "O Movimento".

Pretendo abordar conto a conto, mas antes falar da obra em geral. A tradução é muito estranha, não pela tradução em português-PT, mas pela constante tradução de coisas intraduzíveis que poderiam ser mantidas em inglês. Isso atrapalha a leitura de certos contos, pois há jogos linguísticos, gírias e referências a cultura pop que passam batidas e que fazem parte da forma de escrever dos cyberpunks. Pulando-se a esses detalhes a leitura compensa, pois as histórias valem a pena, todas elas. Vamos tecer um breve comentário conto a conto.

O contínuo de Gernsback (William Gibson): Este conto já foi resenhado, isoladamente no blog. Confira aqui.


Olhos de Serpente - Snake Eyes (Tom Maddox): George Jordan é um veterano de guerra estadunidense num futuro próximo indefinido (que poderia ser muito bem 2017), que teve um aparato militar implantado no cérebro chamado Serpente. Então, o governo o abandonou e George recorre ao submundo para remover o dispositivo, o que o leva a uma companhia pirata sediada na órbita terrestre. A dicotomia entre o fetichismo militar e a repulsa pelo aparelho implantado tornam o conto muito fiel ao que se imagina do cyberpunk.


A pecadora - Rock on (Pat Cadigan): A única mulher participante da coletânea nos traz um aventura frenética de uma pecadora (sinner, numa analogia a sintetizador) talvez rápida demais talvez por ser uma introdução do seu romance futuro, "Sinners". É interessante ver a relação da música com o cyberpunk neste conto e o tom escrachado e sensual (sensorial e sexual) da narrativa. Muito bom.


Contos de Houdini (Rudy Hucker): Não há nada nessa estória que remeta aos estereótipos do cyberpunk e acredito que o autor do conto sequer os buscou, contudo esta curta estória resume a vida agitada do futuro próximo (o nosso presente?), cercada pela câmera do Realitty Show da vida real. Posso estar falando besterias mas esse "slice of life" de Houdini dispensou demais alegorias.


400 rapazes (Marc Lidlaw): Em um futuro com uma sociedade destruída acompanhamos um menino mudo, membro de uma gangue, entre muitas, onde elas dominam o que sobrou da civilização. A narrativa constrói rapidamente sobre neologismos, gírias (tradução atrapalhou muito nesse ponto) e um ambiente underground. Esse ambiente undergound é a característica que mais remete ao cyberpunk como imaginamos. 


Solstício (James Patrick Kelly): Tony Cage fez, muito jovem, fortuna na industria de drogas recreativas e decidiu gastar uma parte dessa fortuna em um clone feminino seu (Wynne) e, desde então, passou metade de cada ano congelado almejando estar adulto quando ela estivesse adulta também. O conto desenrola a relação de Tony e Wynne e, do passado de Tony que o fez gerar sua fortuna e por uma obsessão do personagem pelo Stonerange. O personagem não tem carisma, o que prejudica o envolvimento com a estória (enquanto entretenimento), mas é competente em passar toda a solidão de Tony e sua relação doentia é desconfortável de se ler, ponto para o autor. 


Petra (Greg Bear): Petra é um conto bizarro, que se lido hoje seria facilmente classificável como "New Weird", e que não tem nada do que se espera quando se fala de cyberpunk. Trata-se de um mundo onde Gárgolas de pedra e humanos convivem em tensão e preconceito. Há poucas mulheres, que são freiras, e há híbridos de gárgolas com humanos, que são tratados como a escória dessa sociedade. O dilema de ser metade não-humano é totalmente pertinente ao cyberpunk mas numa roupagem gótica, uma das partes que formaram o cyberpunk. O conto é repleto de reflexões sobre o mundo e a busca por ídolos mas vai decepcionar aqueles que esperam implantes neurais e samurais urbanos. De alguma forma, isso vale para quase todos os contos do livro. 


Até que as vozes humanas acordem (Lewis Shirner): Não sei explicar o quão malabarismo da minha parte seria descrever este conto como um biopunk, por mostrar experiências genéticas bizarras ou que tenha a qualidade de ter um mistério razoável na estória, mas a estória parece deslocada, até em meio as estórias que se distanciam da estética conhecida do cyberpunk. Ainda sim, está longe de ser um conto ruim.


Zonalivre - Freezone (Jon Shirley): É o maior texto do livro. Aqui a estória se passa numa cidade ancorada na costa da África onde a unica lei é a lei do capitalismo mais selvagem. Nela acompanhamos a estória de Rickenharp, líder de uma banda medíocre que busca estar sempre fora da moda. Retrata bem a sensação de deslocamento do sujeito na cidade mas a noveleta peca na construção de uma estória envolvente. O protagonista foge loucamente, mas parece que se trata apenas movido por sua paranoia. Fica valendo mais pelo turismo pela cidade cyberpunk como imaginamos (e mais interessante) bem descrita, apesar de algum infodump no início, e personagens que não contribuem para a estória se tornar interessante.  


Vidas de pedra - Stones Live (Paul di Fillipo): Stone vive na "Confusão", local que resume toda a baixa qualidade de vida do futuro cyberpunk. O autor passa toda o imediatismo de uma vida quase animal e sem sentido, que não o da própria sobrevivência. Até que um dia Stone recebe uma proposta de emprego da misteriosa empresária e passa a ver o mundo com novos olhos e aprende a raciocinar. O conto mostra uma transformação muito interessante em Stone que culmina um bom final.


Estrela Vermelha, Órbita de inverno (Bruce Sterling e William Gibson): O conto se passa num futuro onde a URSS venceu a corrida espacial colocando o primeiro homem em Marte, contudo esses dias gloriosos já são passado. A estação espacial Soyus está prestes a ser desativada pelo politburo mas o Coronel Korolev, herói celebre por ser o primeiro homem em Marte e comandante da estação espacial, não quer encerrar sua missão de décadas e dá início a um motim. O que chama a atenção no conto é a perspectiva de abandono da corrida espacial e de declínio da URSS antes de sua queda. Contudo, a realidade se revelou mais rápida que qualquer um poderia imaginar: A URSS caiu em 1991, poucos anos depois da escrita do conto (metade dos anos 1980). Outra coisa curiosa, são os EUA descritos como uma nação em decadência também, o que me faz imaginar que este conto é do mesmo universo que o outro conto de Sterling (Vemos as coisas de modo diferente). Quanto a forma como os soviéticos são retratados, segue a cartilha sem muita imaginação: O protagonista soviético que se amotina (Coronel Korolev) é um individuo honrado e desiludido com o governo, o que choca de frente com a burocracia estatal que o reprime. Os estadunidenses, em sua rápida aparição, são oportunistas e aventureiros. Esse aspecto reduz a estória a uma versão FC dos livros de Tom Clancy (principalmente "A Caçada ao Outubro Vermelho") e eu esperava mais da dupla William Gibson e Bruce Sterling num conto juntos, mas está longe de ser um conto ruim, pelo contrário, vale a leitura e muito.    


Mozart de Óculos Espelhados (Bruce Sterling e Lewis Shirner): Conto divertidíssimo. Dois viajantes do tempo retornam ao passado onde encontram Mozart jovem e o apresentam a própria música antes de tê-las composto. Resultado: Mozart, não se interessa mais em compor e quer apenas fazer sucesso no nosso tempo com versões sintetizadas de suas próprias músicas. Nenhum viajante do tempo demonstra qualquer senso de responsabilidade com a alteração da história e a mudança de fatos parece inalterar o lugar de onde os viajantes vem, o "Mundo Real". O conto conversa, usando o humor, com a a fluidez da pós-modernidade. Há colagens de diversos tempos da história, de Maria Antonieta lendo Vouge até um General de Genghis Khan, como mercenário numa Harley. A falta de perspectiva com o futuro que os habitantes desse passado é um ponto interessante no conto, uma vez que todos sabem como seriam os eventos, como a Revolução Francesa, e que aquilo nunca irá acontecer da mesma forma.


Extra: Esta obra foi resenhada em vídeo no canal Terra Incógnita, do Fábio Fernandes, que fez uma verdadeira aula sobre Cyberpunk.

Um comentário:

  1. Essa edição da Coleção Argonauta é bem rara. Já rodei em vários sebos virtuais em busca, mas nunca consegui.

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